Movimentos sociais fizeram 14 mil propostas de emendas ao texto
A Assembleia Constituinte Estadual realizada em 1989 está entre os fatos políticos mais importantes já protagonizados pelos movimentos sociais organizados e pelo Poder Legislativo no Espírito Santo. Essa participação é resultado de uma série de acontecimentos desencadeados no cenário político nacional a partir do início da década de 1970.
No cenário nacional, as eleições legislativas de 1974 fortaleceram a oposição ao regime militar no Congresso Nacional. Das 22 vagas para o Senado, o MDB conquistou 16 delas. No Espírito Santo, com mais de 200 mil votos, Dirceu Cardoso (MDB) foi eleito senador da República. Na Assembleia Legislativa capixaba, a Arena elegeu 15 deputados contra 9 do MDB.
Os abalos na economia nacional por causa, entre outras, da crise internacional do petróleo – consequência da Guerra do Yom Kippur, no Oriente Médio (1973), e o recrudescimento da repressão política contra a esquerda foram os principais fatores que contribuíram para o fortalecimento da oposição.
Com a permissão do debate dos candidatos pela TV nas eleições de 1982, a sociedade pôde conhecer os políticos de oposição, num período em que não havia liberdade de expressão.
Gradativamente, os espaços políticos foram ocupados pelos oposicionistas ao regime militar. Em outubro de 1975, o jornalista Wladimir Herzog foi torturado e morto nos porões do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo.

Em dezembro foi constituído o Movimento pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, que se expandiu para todo o país. A aprovação da Anistia Geral, em 1979, trouxe de volta os exilados, libertou os presos políticos, e aqueles que estavam na clandestinidade voltaram à vida normal.
As ações políticas pela redemocratização do país cresceram com as eleições gerais de 1978 e 1982 e culminaram com o movimento das Diretas Já, no início de 1983. O Congresso Nacional não aprovou as eleições diretas para presidente e elegeu indiretamente Tancredo Neves, em abril de 1985. Em 1986, o país elegeu o Congresso Constituinte – também com função legislativa, e, em outubro de 1988, a nação conheceu uma nova Constituição Federal.
O historiador e assessor parlamentar na Ales Marcelo Siano Lima comenta a polêmica que tomou conta dos debates políticos no país antes das eleições de 1986, que elegeram o Congresso Constituinte.
Crescem as mobilizações
Os movimentos sociais no Espírito Santo cresceram e se fortaleceram, desde a década de 1970, com reivindicações básicas e imediatas como melhorias no saneamento, transporte, saúde, moradia, entre outras demandas. Durante o processo de redemocratização, esse crescimento foi inédito e histórico. Marcelo Siano enfatiza a grandeza das mobilizações que aconteceram no período.
“Durante a década de 1980, o Brasil foi cenário de lutas cívicas impressionantemente bonitas. Começa antes, nos anos 1970, com a redemocratização, pela Anistia, pela convocação da Constituinte, vem 1984 com a luta pela eleição direta, vêm as eleições de Tancredo”, ilustra.
O ex-deputado Claudio Vereza reforça o relato do historiador sobre a intensificação das mobilizações sociais em torno das demandas locais e das políticas nacionais. Em 1989, os movimentos populares apresentavam suas reivindicações ao Parlamento capixaba, fruto de anos de organização dos trabalhadores.
Constituinte capixaba
Após a promulgação da Constituição de 1988, foi a vez de os estados escreverem as suas respectivas Cartas. A Assembleia Estadual Constituinte capixaba funcionou de 9 de março a 5 de outubro de 1989.
Foram sete meses de debates intensos. Entretanto, os movimentos sociais tiveram apenas 15 dias para apresentarem suas emendas. Apesar do tempo curto, 14 mil propostas de emendas de iniciativa popular foram elaboradas, cada uma com pelo menos 500 assinaturas.
Considerada uma das mais progressistas das constituições estaduais do país, a Carta espírito-santense foi promulgada pela Assembleia Legislativa a 5 de outubro de 1989. Foi a 11ª desde novembro de 1890, quando o vice-governador Constante Gomes Sodré outorgou o texto provisório da primeira Constituição capixaba.

Constituições do Espírito Santo no período republicano
A explicação para o fato de a Constituição capixaba ter sido considerada a mais progressista está em sua forma de elaboração, protagonizada pelos deputados progressistas – minoria no Plenário – e pelos movimentos populares em ascensão naquele momento histórico no estado e no país.
Participação social
Marcelo Siano relata a abrangência das temáticas demandadas pelos movimentos sociais, as responsabilidades na elaboração do texto constitucional, as dificuldades materiais e as questões políticas desafiadoras apresentadas.
“A metodologia da Constituinte seguida aqui no Espírito Santo não foi diferente da de Brasília, respeitando a dimensão do estado comparado aos 500 e tantos parlamentares do Congresso. Nós dividimos em três grandes comissões. Paulo Hartung, com quem eu trabalhava, integrou a Comissão III sobre os assuntos sociais. Para presidir essa comissão foi eleito o deputado Dário Martinelli, do PFL, e como relator o deputado Ângelo Moschen, do PT”, conta, referindo-se ao pluralismo e às diferenças ideológicas.
Segundo Marcelo Siano, no início dos trabalhos os parlamentares não sabiam muito bem o que fazer, além das dificuldades materiais. “Então era um tal de copia e cola, copia e cola. Nós não tínhamos internet e nem computador na Assembleia. Nós fizemos a Constituição toda com máquina de escrever”, revela o assessor parlamentar.

“Eu e um grupo de amigos, que eram assessores do deputado João Martins (PCdoB), Marcos Godinho, com a bancada do PT começamos a conversar muito sobre o que fazer. A gente refletia um pouco a forma meio tateante que os deputados estavam. Era uma responsabilidade muito grande redigir o texto constitucional. Para nós, não era simplesmente elaborar uma lei ordinária. A gente tinha os marcos que a Constituição Federal colocava”, lembra Marcelo Siano.
Para eles, o desafio era ir além da Constituinte Federal, adequando o texto às necessidades do Espírito Santo. “Era possível mudar exatamente na área social, que é de onde emerge a maioria das políticas públicas. Como a sociedade queria participar, a gente recebia pessoas o tempo todo, com ideias, interlocução, todo mundo queria participar, era importante participar”.
O historiador destaca que o texto não é apenas de autoria dos assessores e deputados. Houve participação ampla da sociedade. Professores universitários, sindicalistas, profissionais liberais, empresários, todos ajudaram, subsidiaram os trabalhos da Constituinte.
Origens dos movimentos
O ex-deputado estadual Claudio Vereza atribui a participação popular no processo Constituinte estadual, em 1989, também à ação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, e às contribuições do prefeito Max Freitas Mauro, no início da década de 1970. À época, Vereza era morador de Aribiri, um dos bairros mais mobilizados de Vila Velha.
Outro protagonista da participação popular foi o ex-deputado estadual e professor de Filosofia da Ufes – e à época militante dos movimentos populares em Vila Velha – Aloisio Krohling. Ele lembra as origens dos movimentos populares estaduais e a sua atuação no processo da Constituinte. Como representante da Federação das Associações de Moradores e Movimentos Populares do Espírito Santo (Famopes), Krohling liderou a apresentação das propostas de emendas de iniciativa popular na Constituinte.
Para o professor, o crescimento dos movimentos populares explica a participação intensa na elaboração da Constituição.
“Na década de 1980 o movimento pela Constituinte começou dentro da universidade. Na experiência dos movimentos comunitários, movimentos populares na Grande Vitória, percebeu-se que discutir o orçamento do município era essencial e isso apareceu também na Constituição estadual. Tanto as pessoas quanto as ideias que corriam na época tiveram grande influência da formação da Constituição estadual, sendo uma das constituições mais atuais dentro da década de 1980”, registra Krohling.
Diversidade e pluralidade
Uma das características da Constituinte foi a diversidade de abordagem, que refletiu a situação social da população. Os movimentos populares urbanos e sindicais trouxeram para debate questões relativas às suas demandas históricas – melhores condições de moradia, saneamento, saúde, transporte público, mais escolas, creches – avançando para reivindicações mais gerais, como melhores salários para os trabalhadores, entre outras.
Claudio Vereza, Aloisio Krohling e Marcelo Siano destacam a diversidade e amplitude das propostas apresentadas pelos movimentos populares. Todas elas passaram por um processo de filtragem que levava em conta a Constituição Federal e a abordagem política da questão.
Vereza descreve aqueles anos de militância como intensos e com a importante participação popular na Constituinte. “Com milhares de emendas populares com 500 assinaturas cada uma. Vieram emendas das Comunidades Eclesiais de Base, de sindicatos, dos servidores públicos, da cultura, da área científica, econômica. Isso tudo passava por uma peneira muito forte, principalmente das competências que o texto federal havia designado para os estados”, explica Vereza.

A filtragem técnica e política conforme as competências dos estados era feita, acima de tudo, pelos parlamentares constituintes. “Mas a gente que era oriundo dos movimentos populares achava que podia tudo. E apresentamos emendas das mais diversas, mesmo que violassem as competências designadas pela Constituição Federal. Só que o governador Max colocou líderes do governo e na Constituinte muito conservadores. Inicialmente, Salvador Bonomo, depois Lúcio Merçon, oriundo do movimento integralista, antes da ditadura militar, de Castelo. Merçon foi de uma dureza, de impedir qualquer tipo de emenda que violasse as competências designadas pela Constituição Federal, mas também, de forma ideológica, ele barrava emendas”, anota Vereza.
Para o historiador Marcelo Siano, o debate no Congresso Nacional foi mais duro do que aquele ocorrido na Assembleia capixaba. Ele fez parte da Comissão Temática III, que tratou da educação, segurança, saúde, meio ambiente, esportes, defesa dos interesses do Estado e dos cidadãos, além da ordem econômica.
“O governador Max Mauro, diferentemente do presidente Sarney, não interferiu nos trabalhos da Constituinte. Max teve uma postura republicana. Ele teve uns embates com os parlamentares dele com relação a algumas teses, mas ele não retaliou. Houve muita pressão, muito lobby, muita participação e isso é que faz o Legislativo uma Casa viva”, afirma Marcelo.
Parlamento capixaba
O Parlamento capixaba era formado por 14 deputados do PMDB, sete do PFL, dois do PDS, dois do PDT e um do PTB. A esquerda era composta por três do PT, um do PCdoB, e contava com a participação de Paulo Hartung, então filiado ao PMDB, e de outro parlamentar do PDT. Marcelo Siano conta como era o fluxo do debate das propostas das emendas constitucionais.
“Aqui no estado, mesmo com cinco deputados de partidos de centro-esquerda e esquerda, você conseguiu elaborar uma Carta com os parlamentares dialogando muito. A comissão em que eu mais atuei que foi a comissão de assuntos sociais, presidida pelo deputado Dário Martinelli, do PFL, que aprendi a respeitar e admirar muitíssimo, ligado ao agro de São Gabriel da Palha, e tinha como relator o deputado Ângelo Moschen, do PT, que vinha do sindicato dos trabalhadores rurais. O diálogo entre eles foi perfeito. Em momento algum Dário censurou as propostas mais avançadas”, ficando a decisão final para o Plenário, comenta Marcelo Siano.
Mobilização popular
Aloisio Krohling, como representante da Famopes, apresentou proposta que incluía a participação dos movimentos sociais nas decisões do Estado, e isto incluía decisões sobre o sistema de transportes públicos. Textualmente dizia: “O Estado prestigia e garante, nos termos da lei, a participação da coletividade na formulação e execução das políticas públicas em seu território”. Em outro ponto, propõe: “É assegurada a participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos órgãos públicos estaduais”.
Com relação aos Orçamentos dos municípios e do Estado, defende a participação das entidades representativas da sociedade “no projeto de lei de diretrizes orçamentárias”.
A participação da sociedade civil, em algum nível, consta nos artigos 167 (assistência social), 186 (meio ambiente), 226 (transportes), 231 (desenvolvimento urbano), 240 (habitação), 244 (saneamento básico), 282 (lei de diretrizes orçamentárias), entre outros, da Carta estadual.
Outros temas demandados com muita força pelos movimentos populares, além do transporte público, foram a saúde, a questão de gênero e a do orçamento público. Krohling se lembra da importância dessas áreas na Constituinte.
“Na área da enfermagem tinha a presença da militante Elda Bussinger, que mais tarde se tornou doutora em Direito e doutora em Enfermagem, e na época participava do movimento por uma Constituinte popular. Ela, com Vitor Buaiz, médico, participou ativamente do movimento. Na área de saúde, sem dúvida, houve de fato uma influência muito forte. Em outras áreas, também. A questão da juventude, feminina, orçamento. Na universidade, no serviço social, a questão da participação da mulher nos movimentos era muito forte”, lembra o professor.
Na visão de Krohling, esse acúmulo de demandas populares foi construído durante anos de mobilização. Os debates sobre a Constituinte com participação popular começaram ainda na campanha das Diretas Já, em 1983-1984, e continuaram nos anos seguintes. Krohling também analisa o perfil dos deputados constituintes e a relação deles com a participação dos movimentos populares na construção da Carta Magna.
Junto com Aloisio Krohling, Vereza participou de debates sobre uma constituinte participativa e ressalta o papel das CEBs e dos movimentos populares de bairro na educação da população para as eleições dos constituintes, bem como a importância de uma nova Carta para o país e o estado.
“Mesmo na Constituinte Federal começou um grande movimento aqui no estado. O professor Aloisio Krohling, que depois foi eleito deputado estadual, ele começou com os movimentos, as CEBs, Igreja Luterana e Presbiterianas Unidas, o movimento Constituinte sem Povo não Cria Nada de Novo, participação popular na Constituinte. Um debate anterior à Constituinte Federal e Estadual. Como deputado estadual, eu participei de muitos debates no interior do estado e aqui na Grande Vitória. Nunca tinha havido um processo de participação popular. Em 1988, foi esse caudal de movimentos que deu gás para a participação popular na Constituinte Estadual”, registra Vereza.
Mas o prazo de 15 dias para a entrega das emendas populares foi demasiadamente curto. O professor Krohling destaca o papel da universidade e dos estudantes nos mutirões para a coleta de assinaturas em número mínimo para dar face legal às propostas de emendas de iniciativa popular.
“A Ufes sempre foi um laboratório de movimentos. Os próprios estudantes foram os divulgadores das emendas, desde o início. Os estudantes na época tinham participação bem maior do que hoje em dia. As assinaturas eram coletadas pelos estudantes e pelos movimentos populares. Cada bairro tinha o compromisso de coletar um certo número de assinaturas. E em vários municípios, seja no centro, norte e no sul, você tinha militantes de igreja ou do movimentos que coletavam as assinaturas”, conta Krohling.

Mudanças no meio rural
A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo (Fetaes) apresentou proposta de reforma agrária com a participação dos trabalhadores e sem a interferência do Judiciário na desapropriação das terras. A federação defendia ainda o não envolvimento da PM nas questões agrárias envolvendo os trabalhadores rurais, bem como criação da Justiça Agrária com a participação dos trabalhadores.
Apesar da mobilização dos trabalhadores rurais, essas demandas não foram aprovadas pelos deputados. Mas Vereza destaca outros aspectos relativos ao meio rural que foram incorporados no texto constitucional.
“Em 89, quando houve a Constituinte estadual, os movimentos rurais no estado ainda eram incipientes. Os sindicatos de trabalhadores rurais eram fortes, mas grande parte deles ainda estavam ligada ao Ministério do Trabalho. Não tinham chegado com força no interior. A partir da Comissão Pastoral da Terra com alguns sindicatos em contraposição à UDR, começaram haver movimentos rurais. O MST começou por aí, em 86, 87, e já vieram para o processo Constituinte com alguma força”.
Vereza cita outras áreas que tiveram participação na Constituinte e que obtiveram algum resultado positivo.
“O Conselho Indigenista Missionário que tinha atuação em Aracruz também participou da Constituinte. Há um capítulo específico que ajudamos a defender. Houve propostas boas aprovadas, como a necessidade de legitimação das terras devolutas. designação de terras para quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais sem terra”, enumera Vereza.
Meio ambiente
A Constituição de 1989 também refletiu o início do movimento pelo meio ambiente. “O tema meio ambiente era novo. Só em 1992, houve a segunda conferência mundial, a ECO-92, no Rio. Em 1989, quando houve a Constituinte, o tema era novíssimo. O Espírito Santo não tinha uma Secretaria de Estado do Meio Ambiente”, lembra Vereza.
O texto constitucional incluiu temas como o controle social dos projetos de impactos ambientais e das unidades de conservação ambiental, como as reservas Mata das Flores, Pedra Azul, Cachoeira da Fumaça e Jacarenema, entre outras.
“Na década de 1980, não tinha havido ainda a ECO-92, a conferência da ONU que deu o início mais forte no debate sobre ecologia e meio ambiente no mundo. A ECO-92 foi no Rio de Janeiro. Na Constituinte de 1989 havia um movimento ambientalista incipiente no estado. Conseguimos aprovar um artigo no texto constitucional que hoje seria um absurdo pensar que conseguimos aprovar isso naquela época. Os projetos industriais de grande impacto ambiental teriam de passar por plebiscito no Estado do Espírito Santo. Por causa dos impactos causados pela construção do Porto de Tubarão, da CST, da Aracruz”, comemora.

O ex-deputado compara essa decisão constitucional de 1989 com a realidade atual, quando foi aprovada a Lei Complementar 1073/2023, que altera os procedimentos para licenciamento ambiental no estado.
“Hoje, as próprias empresas fazem seus relatório de impacto ambiental. O projeto aprovado no final de 2023, chamado de Lei da Destruição Ambiental, permite isso. Agora, quando estourou alguma coisa na Arcelor Mittal, a própria empresa emitiu uma nota e ficou por isso mesmo. Proibiram o Corpo de Bombeiros, a Polícia Ambiental, a Polícia Militar de entrarem lá. Nós mesmos sabemos fazer, nós mesmos sabemos cuidar, não tem impacto nenhum”, comenta, indignado.
Pessoas com deficiência
Outro assunto na pauta dos movimentos populares foi a luta das pessoas com deficiência. Buscava-se mudar a cultura carregada de preconceitos e equívocos na forma de tratar esse grupo social no dia a dia, incluindo reivindicações para facilitar a mobilidade e a vida de pessoas com deficiências. Vereza, cadeirante desde os 15 anos de idade, participou intensamente dos debates e ações das PcDs.
Uma das emendas referiu-se à alteração da expressão “pessoa portadora de deficiência” para “pessoa com deficiência”. Vereza explica: “Os debates em nível mundial mudaram a ideia de pensar sobre as pessoas com deficiência. A deficiência não está na pessoa, está na relação da pessoa com a sociedade. Ela se torna uma pessoa com deficiência a depender dos limites que a sociedade impõe a essa pessoa”.
“Na Constituinte federal e estadual, um tema muito novo surgiu porque o movimento das pessoas com deficiência chegava ao Brasil. Na Constituinte Federal foi apresentada uma emenda com 13 itens com temas os mais diversos, na área da educação, saúde, transporte, acessibilidade etc. Não foi aprovada a instituição da Libras nas TV por lobby da Rede Globo contra a obrigatoriedade. Na Constituinte estadual, garantimos prédios públicos com acessibilidade, passe livre para transporte coletivo e outros itens. Aqui no ES já havia um movimento grande da Associação Capixaba das Pessoas com Deficiência e que na época brigou bastante para garantir na Constituição Estadual vários itens relativos aos direitos das pessoas com deficiência”, registra Vereza.
Contra as privatizações
O Sindicato dos Bancários teve participação ativa na definição, no texto constitucional, das instituições estatais Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes) e Banco do Estado do Espírito Santo (Banestes). Algumas prerrogativas foram asseguradas ao Estado.
Por exemplo, o texto original, de 1989, o parágrafo 2º do Artigo 219, garantia que “a criação, fusão, cisão, incorporação, alienação e extinção, ressalvada neste caso a competência da União, de instituição pública de caráter financeiro e de suas subsidiárias dependerão de autorização expressa da Assembleia Legislativa”. Foi o texto aprovado em 1989. No entanto, a Emenda Constitucional (EC) 37, de 24 de janeiro de 2002, revogou tal parágrafo.
A EC 37/2002 também revogou outros três artigos. O 222 garantia 50% mais um das ações das instituições financeiras. O 223 concedia garantia do Tesouro Estadual para as aplicações e depósitos realizados junto ao banco oficial do Estado.
Já o artigo 224 assegurava aos filhos dos produtores rurais carentes o acesso a crédito nas instituições estaduais para custeio de seus estudos.
Outra alteração promovida pela EC 37/2002 foi no artigo 148, que passou a ter o seguinte texto: “As disponibilidades de caixa do Estado, bem como dos órgãos ou entidades do Poder Público Estadual e das empresas por ele controladas, serão depositadas na instituição financeira que vier a possuir a maioria do capital social do Banestes, decorrente de sua privatização, na forma definida em Lei”.

O texto original garantia os depósitos dos recursos financeiros do Estado às “instituições financeiras oficiais do Estado”. Essa alteração do artigo 148 foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em novembro de 2004, atendendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin 2600-3), por entender que o dinheiro público não pode ser movimentado em instituição privada, de acordo com a Constituição.
Portanto, o texto original continua em vigor, mas sujeito a ressalvas que devem ser previstas em lei, de acordo com a EC 52/2006. E o Banestes continua hoje sendo um banco de propriedade do Estado capixaba.
Tramitação interna
O debate e o processo de elaboração do texto constitucional passaram por três comissões temáticas que, ao todo, receberam 14 mil propostas de emendas de iniciativa popular, apresentadas pelo movimento social organizado, num período de 15 dias. Cada proposta de emenda continha pelo menos 500 assinaturas.
O movimento social organizado se apresentou com suas propostas, especialmente na Comissão Temática III, que tratou de temas sociais. Foi um momento fértil de ideias, de proposições, de acordo com Marcelo Siano.
Constituinte é vida
O texto constitucional capixaba, na área dos direitos humanos, é muito mais avançado que o de outros estados. É o que afirma outro personagem importante no processo constituinte, o juiz aposentado João Batista Herkenhoff, à época membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, em entrevista concedida a este repórter em 2014, quando a Constituição estadual completou 25 anos. Mas “há uma diferença entre o que está escrito e a realidade”, contemporiza.
Para o juiz, o “processo constituinte é mais importante que a Constituição em si. A Constituição é letra que pode matar; o processo constituinte é história, é vida”. E continua: “Torço para que, com a pressão do povo, vençam as teses progressistas” e que a “maior riqueza da futura Constituição do Estado do Espírito Santo estará na medida em que incorporar as reivindicações dos movimentos sociais”.
Os parlamentares não acataram a proposta popular apresentada pela Pastoral Carcerária. Herkenhoff lembra que havia a proposta de abertura e inspeções das prisões, “o legítimo direito de fiscalizar” os presídios do estado, explica. Ele cita a existência da “cela ratinho”, tão diminuta que impedia o preso de ficar de pé. Mas o direito constitucional de entrar nas prisões não foi aprovado.
Avanços democráticos
A Carta Federal de 1988 abrange os princípios de quatro gerações de direitos consagrados por textos constitucionais contemporâneos. Trata-se da mais avançada conquista dos cidadãos brasileiros na busca do exercício pleno da liberdade, igualdade, fraternidade e participação democrática num Estado de direito democrático e social.
A Constituição Estadual de 1989 reflete o disposto na Constituição Federal e consagra o papel do Poder Legislativo como órgão de Estado e promotor do debate democrático de ideias, propostas e projetos. Papel esse já demonstrado na história, seja nos momentos de normalidade institucional, seja nos momentos de crise.
O texto reafirma as quatro gerações de direitos universalizados: liberdade (individual, políticas, de expressão, religiosa, comercial, de iniciativa, de propriedade, de ir e vir, à vida); igualdade (direitos sociais, econômicos, culturais e humanos, direito de organização); fraternidade (direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente protegido); direito à democracia, ao pluralismo, à informação. O resultado de todo o processo constitucional foi uma Carta progressista.
Marcelo Siano destaca a importância de um Poder Legislativo independente, aberto à população e ao diálogo com a sociedade. O processo Constituinte demonstrou isso e, depois de um período de refluxo, a Ales, desde 2003, tem cumprido seu papel de órgão de Estado representando o povo capixaba, ouvindo e dialogando com a sociedade, estabelecendo laços de representatividade com os parlamentares bastante fortes.
“Acho que nesse início de século, de uma forma ou de outra, nós temos feito isso na Assembleia do ES. Temos aberto a Assembleia de uma forma constante desde 2003, o que tem permitido que a Assembleia pudesse ter um nível de representatividade muito maior, através dos parlamentares, junto ao conjunto da sociedade capixabas”, analisa Marcelo Siano.
Em seus 35 anos de vigência, a 11ª Constituição capixaba, a mais avançada peça legislativa produzida pela Ales em seus 190 anos de existência já recebeu (até novembro de 2024) 117 emendas em seu texto original.
Série histórica sobre os 190 anos da Ales
- Assembleia do ES nasce sob o comando da elite
- Legislativo ganha força com a República
- Golpes de Vargas paralisam Legislativo
- Assembleia retoma ação política após golpes
- Questão agrária pauta Ales na década de 50
- Maioria da Assembleia Legislativa apoiou o golpe de 1964
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Para a elaboração desta série de matérias sobre os 190 anos da Assembleia Legislativa do ES foram realizadas entrevistas com especialistas e pesquisas jornalísticas no Arquivo Geral e Biblioteca João Calmon, ambos da Ales, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Instituto Jones dos Santos Neves, Biblioteca Pública Estadual, Biblioteca Nacional Digital, Arquivo Nacional, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV RIO), além de consultas a artigos científicos, dissertações, teses e livros publicados.